OBS: esta carta não escrevi hoje, mas relendo-a se aplica em muitos momentos meus. O amigo a quem me reporto consegui localizar na lembrança apesar do tempo. E a ele escreveria novamente hoje se precisasse de um amigo pra me ouvir em palavras ou silêncio.
Querido, hoje eu queria um amigo.
Alguém muito especial, muito querido, muito sensível. Achei nesse momento que você – justo você – me entenderia, me ouviria ou até ficaria em silêncio a escutar minhas não palavras. Talvez você me pergunte, como eu me perguntei, porque você. Creio que porque um dia foi especial comigo.
Talvez pelas papoulas, pelos sonhos loucos e lindos, pelo almoço à beira do lago, povoado de quimeras e olhares feitos de puro carinho. Foram fatos momentâneos, bem sei. Foram dias soltos no tempo da vida real. Mas reais ou utópicos, foram maravilhosos. E hoje que eu queria tanto um amigo, quem melhor do que você pra me entender?
Hoje, quando creio que a vida é feita de momentos, quando não creio em amor pra sempre, quando meu sorriso já não é tão jovem e despreocupado, quando uma lágrima quase sempre brinca teimosa prestes a rolar se não for contida, quando já não sou a jovem que você falava ou chamava sorrindo, hoje eu queria você, amigo.
Não sei nem se eu diria o que penso, o que tenho, o que quero. Talvez eu não lhe contasse desses muitos anos de vida em que nem soube de mim. Mas você reconheceria em meus olhos muita realização, assim como inúmeras decepções. Talvez visse muita vida reprimida, muito conformismo e muito querer bem. Mas sei que entenderia eu lhe dizer – preciso de você hoje – e depois não lhe contar nada.
Você, que sempre eu disse ser um menino que cresceu depressa, mas se esqueceu disso, talvez pudesse hoje me devolver essas palavras. Você, que muitas vezes eu chamei de máquina, cheio de preceitos, preconceitos e normas estabelecidas, talvez hoje pudesse me ver a alma.
Falei tantas vezes que você precisava ser mais gente, só gente, esquecendo a máquina em que o mundo quer nos transformar, hoje sou quase a engrenagem que tanto repudiava.
Hoje o entendo mais, menino grande, sei que as circunstâncias pesam mais que os sentimentos e as revoltas. Hoje posso lhe falar como gente grande, infelizmente. Mas posso ainda concordar com o Pequeno Príncipe quando ele dizia “as pessoas grandes são tão complicadas…”. Triste quando a gente começa a enxergar um chapéu onde a criança desenhou uma jiboia que engoliu um boi. E triste quando a gente deixa um baobá crescer em nosso planeta. Dorido quando a gente se torna o rei que sabe contar mas não tem a quem governar. E enlouquecedor quando vê que se tornou um acendedor de lampiões e que, a cada anoitecer, sem mesmo ter visto o por do sol com suas maravilhas, o que sabe é só acender um facho de luz iluminar algo quase desprovido de vida e sentido.Realmente quando se chega a isso tudo, é melhor deixar que a serpente morda e acabe com tudo através de seu veneno.
Mas, falando com você agora, parece que entendi muita coisa que estava imperceptível. Percebo que não sou a rosa que espirra frágil ao vento precisando de redoma para ampará-la.
Também não sou forte o bastante pra resistir ao nascer da grama e ervas daninhas ao meu redor. Nem pra resistir ficar só por muito tempo, sem trato e cuidados. Resisto a muita coisa, mas não a tudo ainda.
Sou quase pequena e simples e quase grande e complicada. Preciso aprender a não ser gente grande pra poder ser pequena sempre. Quem sabe assim eu possa ser mais feliz e satisfeita, não carecendo de veneno pra retornar ao meu planeta pequenino, mas maravilhoso e perfeito pra mim.
Agradeço, amigo querido, por essa escuta silenciosa que me proporcionou. Era tudo o que eu precisava neste momento.